Friday, February 17, 2006

Alfreda

Um vazio enfermo. Um sentimento de ressentimento. Na boca um corte de frio. O sangue endurecido. E um vento acompanhado de um jato de sol cuja luz não iluminava nada, aliás escurecia mais ainda a vista. À vista. Quanta dívida. Quanta coisa em tão pouco tempo. Para nada... Alfreda pensou em começar a pular. E foi o que fez. Ficou lá, pulando em um só pé. O que doía mais. E chorava. E cantava de tristeza uma música bem alegre. Que era para sofrer mais. O impacto seria maior. Pulava furiosamente. Com muita violência. Pulava. Pulava. Pulava. Era sua cruz, pensava. E era mesmo. Que se há de fazer? Pular! Quando suas forças resolveram ir embora, Alfreda parou. E num rochedinho sentou. Mas agora não chorava. Suava.
Agora estava andando um pouco. Para descansar. Seus olhos um pouco inchados traziam um dossiê consigo que explicava sua vida. Sua vida em fase terminal. Tinha um câncer. Da pior espécie. Uma que corrói a borda da alma. E que, por fim, põe fim. Alfreda tomou um sorvete de eucalipto. Era nojento. Traduzia o sabor de tudo quanto houvera experimentado. Sugou com voracidade. E pediu outro. Depois vomitou tudo. E voltou a chorar. E pulou mais um pouco. Com o pé doído. Teve pensamentos de curso doentio. E resolveu parar tudo. Pensou o quanto. Pensou o tempo. Pensou o pouco. Parou de pensar. Chorar era melhor. E, no entanto, gargalhou como uma louca no meio da praça. No exato instante em que um amontoado de rapazes passava. “Que raça!”, pensou. “Que desgraça!”, pensou. “Ninguém me dá bola”. E uma criança caiu na sua frente, derrubando em si uma bola. Alfreda, de um chute agressivo, fez a bola atravessar a avenida. “A avenida da vida”, pensou. A mãe da criança teve um surto. Correu atrás da bola enquanto julgava a reputação de Alfreda, que já havia tomado a chupeta da criança e corrido em direção do parquinho rindo infamemente. “Vem pegar, vem!”, berrava. “E pega aqui também, ó!”, enquanto bolinava em seu próprio púbis, meio de fora. Mas correu tanto que a mãe deu que era uma doida.
Agora corria, despenteada. Depois de algumas oito quadras parou. Com uma chupeta na boca. “Agora estou melhor”. Chorou mais um pouco, patética e surtada. Como queria que pensassem.
“Se eu te amo e tu me amas...”, cantarolou entre dentes e látex. Que seria o amor? Borracha. O amor é borracha. “Todos aqueles que diziam me amar só fizeram apagar o amor em mim. Me pisotearam de uma tal forma, que sinto como se fosse uma lousa velha e quebrada. Eu sou uma lousa”, era o curso da sua mente.
Jânio, seu último apego, sempre repetia coisas como “Meu bem, que é que tu tens? Estás tão acanhada. Não te sentes à vontade comigo na tua presença? Tu não te soltas. Tu precisas tirar toda a roupa.” E Alfreda o repelia como a um tatu. “Mas eu sempre faço esse furinho na calça, seu tarado! Não passa, é? Não passa?”.
Jânio foi rápido na vida de Alfreda. Não havia tempo a se perder na vida de ninguém. Ele não tinha paciência para ensinar, ela não tinha para aprender. E a vida se resume nisso. Um tempo perdido. E olhe que Alfreda era bem fogosa. Frigidez passava longe. Precisava de um cursinho semi-intensivo. E se masturbava com tudo e em todos os lugares. Agora mesmo, com uma chupeta.
Pulou. Pulou. Pulou. E a chupeta também pulava. Parou. E a chupeta chorou. As duas suavam.
Alfreda estava particularmente muito triste a essa hora da tarde. Sentou-se a um banco na esquina. E principiou uma reza. Cheia de promessas. Que, de antemão, não iria cumprir. Mas avisou ao Senhor, que do alto da Sua sabedoria compreenderia. O Senhor era um devasso, mas sabia das coisas. Só que achava meio concupiscente que o Senhor só trajasse uma tanguinha mal enrolada nos flancos. Mesmo assim, era o Senhor. Tratava-se do Senhor.
E a pequena Alfreda queria tanto dormir por cima do Senhor. Por isso urrava seu sortilégio no meio da rua. “Oh, Senhor! Que tua mão me bula! Me bula!”. E o Senhor bulia.

1 comment:

D. said...

Indiscritivelmente real.