Wednesday, October 18, 2006

Simone de Beauvoir apagou minhas virtudes

Quero fazer uma breve pausa na minha história até aqui e tentar dizer um pouco mais lúcida e coerentemente de mim. Sem subterfúgios. Não muitos, pelo menos. Cheguei a um certo ponto. Sem volta. E me ocorre que, daqui por diante, talvez o que eu realmente precise seja de mais oportunidades. Oportunidades para mostrar às pessoas como eu sou, de fato. Para dizer a elas as coisas como eu verdadeiramente as penso e vejo. De falar como eu funciono, das maravilhas e das agruras que eu trago em mim. De indicar, mais e mais, nem que através de desenhos ou pantomimas, como as pessoas me tocarem. Oportunidades, também, de perceber se posso contar com alguma reciprocidade; se as pessoas podem se mostrar como elas são, dizer o que pensam sem nenhuma distração de percurso. Tem sido tão difícil encontrar um percurso sem distração alguma. Não é que as máscaras me incomodem: de uma maneira ou de outra você acaba se acostumando. Acontece que sinto uma premência de naturalidade, em sua mais estrita e plena acepção.
Como escrever sobre isso sem passar pelas decepções? Pelos (maus) estereótipos, pelos clichês, pelos recalques? Quem não se decepciona? É ponto pacífico, então ao menos aí eu acredito que posso minimamente me fazer entender. Ultimamente tenho pensado nas inúmeras, variadas (variantes?) e inextricáveis decepções, brotando, como sufocantes e indecentemente verdes trepadeiras, de todos os lados, de onde menos eu esperaria. Eu gosto da solidão, mas nem por isso ela deixa de me apavorar.
Tenho muitas dificuldades em proceder com alguns casos de decepção. Tenho ódio, vergonha, espuma nos lábios, amor. Acredito veementemente em que só nos decepcionamos com alguém por quem sentimos algo mais profundo. Algo como o amor. Possivelmente maior como o amor. Só agora vejo que elevei alto demais o meu preço nesse mercado (para mim mesma). Por isso a decepção. Ninguém é obrigado a topar um preço tão alto e aqueles que se arriscam (arriscaram) sempre sabem como me dizer isso. Obviamente, eu sempre sei como não entender. Sempre sei como me autoembotar perfeitamente. Assumo a culpa. Mea. Toda mea.
Talvez todo o complexo, a fleuma, a glacial e calculada frieza, a persona inventada (e assumida), a franqueza excessiva, o sarcasmo cínico (quem sabe cinismo sarcástico?) somente escondam o pequeno vulcão em vias de realização: a lava preparada. Talvez venha mais amor por aí. Mais entendimento, sabedoria, compreensão, clareza (quem não quer ser entendido, aceito e amado? Atire a primeira pedra!), já que parece, ao que tudo indica, que nunca julguei orgulho e superioridade como coisas ruins. Talvez venha, com mais vontade de aparecer e de se mostrar do que nunca, a fragilidade, sempre adstrita a uma inexpugnável e invisível bolha. Eu estou mudando. Estou em busca de uma possível essência. Minha, só minha. Provavelmente a idade, a saudade (às vezes fico ridícula e melancolicamente nostálgica), os hormônios, a vista cansada, pisada e repisada.
Dizem que os poetas escrevem melhor quando estão torturados. Não há o que se escrever sobre o paraíso perfeito, só há o que se aproveitar. Um dia aprenderei o perdão. Sempre pensei que não cabia a mim dá-lo mas sempre o tive quando precisei. Aprenderei o arrependimento e como não ferir “muito” aos outros e a mim. Aprenderei e apreenderei a baixar a cabeça e dizer “eu errei, me perdoe” mesmo que isso me custe todas as artérias do corpo. Espero não demorar muito, espero poder contar com o apoio dos que me são caros. Espero saber bem me reinventar. Espero. Eu, logo eu, cuja ânsia de inserção no mundo só faz crescer e se reproduzir. Eu, que devo parar de pensar na quantidade e me concentrar na qualidade. Eu, que procuro incertamente. Eu, não tão louca quanto pareço. Eu, para mim sem preço.
Catástrofe e caos cada vez mais instaurados, mesmo que às vezes seja mais cômodo e mais confortável (e eu sei bem disso) ficar do lado dos vencidos, corroborando todos os mitos da vítima, ainda me é permitido reclamar mais um pouco. Eu me permito. Reclamar do afeto pouco, da consideração pouca, do amor pouco, de uma determinada atenção pouca. Tudo bem, a gente se acostuma. Postula. Perde. E muito pouco ganha. Meu objetivo agora é esticar esse pouco em muito e deixar de ser burra. Alguns amigos do coração, outros da mente, outros de outras partes. Uma família merecida. Uma mãe incrível, única, distante, amada. Um amor inexistente. Uma vida deliciosamente dilacerante.

Léo Glück



“Da baixa prostituição à grande hetaira, há numerosos degraus. A diferença essencial consiste em que a primeira negocia com sua pura generalidade, de modo que a concorrência a mantém num nível de vida miserável, ao passo que a segunda se esforça por se fazer reconhecer em sua singularidade: vencendo, pode aspirar a um grande destino. A beleza, o encanto, o sex-appeal são necessários, mas não bastam: é preciso que a mulher seja distinguida pela opinião. É a “estrela” a última encarnação da hetaira.
Houve sempre entre a prostituição e a arte uma passagem incerta, em virtude de se associarem de maneira equívoca a beleza e a volúpia; na verdade não é a Beleza que engendra o desejo; mas a teoria platônica do amor propõe hipócritas justificações para a lubricidade. Frinéia desnudando o seio oferece ao areópago a contemplação de uma idéia pura. A exibição de um corpo sem véu torna-se um espetáculo de arte; os “burlescos” americanos fizeram um drama ao despir-se. O “nu é casto”, afirmam os velhos que, sob a denominação de “nus artísticos”, colecionam fotografias obscenas. No bordel, o momento da “escolha” já é uma parada; ao complicar-se, têm-se os “quadros vivos”, as “poses artísticas” que se oferecem aos fregueses. A prostituta que aspira a adquirir um valor singular não se limita mais a mostrar passivamente a carne; esforça-se por mostrar talentos particulares. As “tocadoras de flauta” gregas encantavam os homens com sua música e suas danças. As Uled-Nail executam a dança do ventre, as espanholas que dançam e cantam no Barrio-Chino não fazem senão oferecer-se de maneira requintada à escolha do apreciador. É para achar “protetores” que Nana sobe ao palco. Certos music-halls, como outrora certos cafés-concerto, não passam de bordéis. Todos os ofícios em que a mulher se exibe podem ser utilizados para fins galantes. Há, sem dúvida, girls, taxi-girls, dançarinas nuas e outras, pin-ups, manequins, cantoras, que não permitem que sua vida erótica se imiscua em seu trabalho; quanto mais este implique em técnicas, invenção, mais poderá ser considerado como um fim em si; mas, freqüentemente, uma mulher que se apresenta em público para ganhar a vida é tentada a comerciar com seus encantos. Inversamente, a cortesã deseja um ofício que lhe sirva de alibi. Raras responderiam a um amigo que as chamasse “Cara artista”: “Artistas? Realmente meus amantes são muito indiscretos”.
Empregarei a palavra hetaira para designar todas as mulheres que tratam, não do corpo somente, mas também de sua pessoa como um capital a ser explorado. Sua atitude é a de oferecer-se aos sufrágios de seus admiradores, não renegar sua feminilidade passiva que a destina ao homem: dota-a de um poder mágico que lhe permite pegar os homens na armadilha de sua presença e deles alimentar-se; arrasta-os consigo em sua imanência.
As mulheres mais livres da Antiguidade grega não eram nem as matronas nem as baixas prostitutas: eram as hetairas. As cortesãs do Renascimento, as gueixas japonesas gozam de uma liberdade infinitamente maior do que suas contemporâneas. Paradoxalmente, essas mulheres que exploram ao extremo sua feminilidade criam para si uma situação quase equivalente à de um homem; partindo desse sexo que as entrega aos homens como objeto, reencontram-se como sujeitos. É na hetaira que os mitos masculinos encontram sua mais sedutora encarnação; ela é, mais do que qualquer outra, carne e consciência, ídolo, inspiradora, musa; pintores e escultores querem-na como modelo; ela alimenta os sonhos dos poetas; é nela que o intelectual explora os tesouros da “intuição” feminina; ela é mais facilmente inteligente do que a matrona, menos afetada na hipocrisia. Emergindo no mundo como sujeitos soberanos, escrevem versos ou prosa, pintam, compõem. Assim, Impéria se tornou célebre entre as cortesãs italianas. Pode acontecer também que, utilizando o homem como instrumento, ela exerça funções viris por intermédio dele: as “grandes favoritas” participaram do governo do mundo através de seus poderosos amantes.
Nenhum homem é definitivamente seu senhor. Mas elas têm a mais urgente necessidade do homem. A própria estrela, privada de apoio masculino, vê dissipar-se o seu prestígio: abandonada por Orson Welles, foi com um ar doentio de órfã que Rita Hayworth deambulou pela Europa antes de encontrar Ali Khan. A mais bela de todas nunca tem certeza do dia seguinte, porque suas armas são mágicas e a magia é caprichosa; a beleza é uma preocupação, um tesouro frágil; a hetaira depende estreitamente de seu corpo que o tempo impiedosamente degrada.
Mas, em conjunto, a atitude da hetaira tem analogias com a do aventureiro; como este, ela se encontra muitas vezes a meio caminho entre a seriedade e a aventura propriamente dita, ela visa a valores feitos, convencionais: dinheiro, glória; mas dá ao fato de os conquistar tanta importância quanto a própria posse; e, finalmente, o valor supremo a seus olhos é seu êxito subjetivo. Justifica, ela também, esse individualismo por um niilismo mais ou menos sistemático, mas vivido com tanto maior convicção quanto é hostil aos homens e vê inimigas nas outras mulheres. Se é bastante inteligente para sentir a necessidade de uma justificação moral, invocará um nietzscheísmo mais ou menos bem assimilado; afirmará o direito do ser de elite sobre o vulgar. Sua pessoa apresenta-se-lhe como um tesouro cuja simples existência é um dom; de modo que, consagrando-se a si mesma, pretenderá servir a coletividade. O destino da mulher devotada ao homem é marcado pelo amor: a que explora o homem assenta no culto que rende a si mesma. Se atribui tanta importância a sua glória, não é somente por interesse econômico: procura nisso a apoteose de seu narcisismo.”

Simone de Beauvoir, em O Segundo Sexo - 2. A Experiência Vivida.