Das coisas que amo, qual levar desta
vez? Daquilo que me é dado levar, não vejo para onde levar, não sei por onde
arrastar dor e carcaça cansada, o fio do caminho íngreme é perdido. Sinto
voltar, com a mirada de Maria, a pá de terra sobre o rosto da mãe morta. A
memória da naftalina, na turbidez dos sonhos eu aguardo em choro a chegada da
luz. O medo desesperado da mão que jamais virá para o abraço, o preço do tempo já
cobrado, os fantasmas são covardes. O piscar de olhos já não apaga mais nada, retorna
e engole, com a esquina as costas redobram, a iluminação dos deuses veio em forma
de moeda gasta: ancinho e caraminguás sem dó. Das coisas que amo, a palma não
conseguiu carregar o pó quente dos ossos queridos, a carne sem magia nem
sentido, dos anos ficam bolero e foto no porta-retrato empoeirado, a ceifadeira
final não conhece limpeza terrena. Com as mãos pego o vão entre corpo vestido e
espírito nu, o chorume das lembranças, o doce afeto da criança, teu revólver o
cigarro, mata-te a ti já, aqui e agora, que ao mundo tu te demoras a matar.
Entre o teu querer e a minha volta morrem pai, filho e todos os espíritos
santos, resta sangue, medo e história arcaica. Restam as décadas felizes, o
sorriso ingênuo em cujas águas o tempo ainda não cravou seu raio, a neve das
têmporas ainda não rasgou tua carne, o teu peito ainda não conheceu terremoto e
assombrações, é preciso chorar o choro de anos engolido, é preciso deitar no
berço de espinhos da tua felicidade. É preciso desver a seiva para acreditar no
amor, é preciso olhar a raça de frente para crer na peste. Das coisas que amo letra,
esmero e quimera na fronte, as artérias trepidam, o regalo é a sombra. Das
coisas que amo a receita é não levar, é deixar o sonho a vibrar com o socorro
entalado na garganta. A moral é o tombo. Grávida, como quem com Lúcifer dormiu,
a esperança é abortada. Natimortos, feto e utopia imploram pela vida que jamais
terão. Em êxtase a plateia grita, sangrando, o touro cai, nas ruas a lua que gira é perdição e fuga estrelada. Das coisas que amo levo cabeça febril, corpo
insultuoso e língua ferida. Das coisas que amo levo o trottoir de uma paixão
que atravessa as galáxias descoradas. Das coisas que amo levo a dança infecunda
das tripas e o idílio dos porcos no cocho da morte. A vida um sonho enquanto
morrer uma verdade sem ilusão.
Esboço de análise semiótica de "Sem Anestesia", de Rogério Skylab
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“Ai!”, grita o sujeito, que cumpre também a função de interlocutor no
impasse entre estesia e anestesia que o texto “Sem anestesia” empreende. Um
int...
4 years ago