Friday, January 26, 2007

Atributos de minha matéria viva



Não estou cansada, apesar de não ter descansado por um segundo sequer. Da altura do meu edifício, vejo o torturante sol derreter a vida lá embaixo. E me é extremamente agradável que eu não esteja lá, sendo derretida junto, mera parte ativa da falência lenta e múltipla dos órgãos do planeta, emoldurado pelas esquadrias flácidas de minhas janelas.

Não há calor, embora haja ausência de frio. Todos os meus signos visuais estão vazios. E úmidos, e latentes. Acabo de comer e sinto fome; fome de uma era, de uma época, de um tempo, intangível e mudo. Não me sinto à vontade com nada e em nada, borbulho internamente como as águas calmas de um rio sonolento. Estou sozinha, decrépita, falida. As injúrias me deixaram. Sorrio levemente, como quem acaba de destampar uma panela cheirosa e promissora. O ar, que fatalmente me rarefaz, inunda narinas e boca com sua petulante e sagaz inexistência. Acabo de ter um orgasmo sacrílego. Pausado, etéreo e nulo. Sou estéril por convicção própria e plena, não temo a danação terrena.
Sempre adorei divulgar idéias abstratas e tolas, despreocupadas e chorosas, mas sagradas, mesmo que falsas. Nunca admiti erosivas deslealdades internas. Nunca soube receber amor de graça, nunca deixei a verdade me adentrar.
Olho a cama, desfeita. Olho o mundo. Não vejo conexão, não tenho tremores, estou calmamente perturbada. Penso nas estradas que estou pisando, nas tintas que me colorem, nas mãos que me pegam. Sinto uma falta.
Estarei longe de você, meu amor, somente durante a tarde. Mas é como se a vida entrasse em suspensão eterna, hibernando pela tua chegada, pelo teu aparecimento em meu dia, pela tua entrada em meu corpo.
Corpo único, fundível e manipulável, irrefreável em seu desejo de ser preenchido, completado, barbarizado e satisfeito.
Se não deixo Jesus penetrar em meu coração, é porque te permito — e só a você — desempenhar tamanha tarefa: não tenho no coração suficiência para ambos. Mesmo que você erre de buraco e entre por outro lado, mais material e complacente. Te deixo me insuflar a imponderável fé pela minha abertura mais macia e quente. Pela minha porta mais desejosa e límpida. Pelo meu corredor sem batentes nem corrimãos, sem qualquer resguardo, de solo brilhoso e infértil. Pelo meu mais sequioso sexo, da tua fertilizante e assertiva tentativa de me inspirar.
Ao pé de quem amo eu me deposito, meu amor.
Deixar de orar pode ser saída honrosa, e, ainda que descamada, desgostosa e desgastada, consigo perseguir a sombra de alguns ideais. Sim, já não são assim tão nítidos ou facilmente perceptíveis, mas, mesmo assim, devo a eles minha empobrecida obediência.
Implacável maturação? Lógica intransponível? Razão despossuída ou somente amor? Se não sou esperta, ao menos colonizada eu sou. Ou serei eu mesma a colonizar meus fãs subterrâneos? Amores subterrâneos? Domino o underground de mim? Sou obrigada, levada, trilhada a matar o melhor de mim?
Se volto no tempo, é por falta de amor próprio, por intermitência persistente, pela permanência do dúbio, do ambíguo em mim. Se me adio, estou confundindo as portas de emergência, as latas de lixo, as mágoas não curadas em mim.
Eu te fiz pensar que não poderia me entender, meu amor. Minhas mãos e meu coração te iludiram enquanto eu, lépida e sórdida, sorria e beijava tua língua rápida e inutilmente prazerosa. Eu chorei quando quis te fazer sorrir, gargalhei quando te vi chorar e todos os meus planos diabólicos de te monitorar os passos e a respiração foram bem sucedidos. Eu tive sorte. Posso ver em teus olhos a decepção do amor verdadeiro.
Sou vaga, eu sei. Sem objetivo, sem outra face a oferecer. Facilmente excitável, meu amor, como você: sou criança ou cão diante de quem se chacoalha o chocolate possível. O provável doce da eternidade, o infeliz amargo que nos percorre pelo atávico de nós. O limão e o açúcar ainda por vir.
Já não tenho mais venenos nem poções do mal. Sou truncada ainda mas, afinal, quem muda tanto assim?
Não desejo mais o pernicioso fim, não incito mais o total defloramento de mim. É pena eu não ter comigo aqui nenhuma barata qualquer com quem tentar irresistivelmente me comparar, é pena eu estar sem fontes, identidade e referência, fluidos e geradores de inovações. É pena as possibilidades terem morrido. É pena o amor, doído, ter nascido. É pena o globo girar mais rápido e mais imundo.
Desligada durante o processo, estou sem nome, sem data e sem fisicalidade qualificáveis. Como consigo ainda tossir?
Estou sendo inventada. Não do nada mas repaginada, aperfeiçoada, minha mecânica sendo revista, dilatada, vaporizada e talvez até poluída. Estou sendo tecida, textura redimensionada; meus bancos de dados e diretórios sendo alargados e compactados; meu espaço está crescendo; tessituras esticadas, pele repuxada e reaproveitada; todo o meu disco rígido em expansão, todo o meu disco mole pendurado, secando ao sol; em meus ossos uma camada de ferro; nos músculos uma camada de amor, deliciosamente balouçante; na cabeça, apagados os males e os benefícios antigos, você, meu amor, acompanhando todo o resto.
Não julgo a falta de amor uma carência, apenas não estou mais apta a opinar.