Houve tempos em que algumas “portas da percepção”, por serem de difícil acesso, geravam uma tal curiosidade obstinada que, somente ao delas saírem, as pessoas começaram a vislumbrar que as coisas simples da vida estavam soçobradas em um manto de informações que não as levaria a lugar algum. Hoje temos redes, teias e canais de acesso linfáticos que nos permitem uma vida asséptica, segura — segundo a sua conexão — e à distância. Mas, e o amor? Aquele amor suado de outrora, quente, cheio de cheiros e gestos e hálitos e olhos e bocas e que só aparece em sua plenitude múltipla através do toque imediato, como se num botão de pressionar algo ele estivesse: é esse o amor que eu quero para mim. Quando o abraço apertado cede, empresta, dá o corpo a qualquer desejo, que não se pode e pelo bem da humanidade não se deve controlar ou reprimir. Há no mundo um lugar onde me sinto em casa, e não é dentro de mim mesma; meu corpo é mera terapia ocupacional. Eu sonho com o nono andar de uma manhã ensolarada, o café feito na cafeteira italiana, o sonho vem da simplicidade da alma, do afastamento da realidade comezinha, mesquinha e que paulatinamente destila capitalismo tardio em nossas conjuradas veias, tão orgânicas quanto o plástico, a seda e o movimento nervoso que se nota no pêlo do rabo dos cães. Nesse meu sonho o amor é meu, puro e insano, inexplicável como só as coisas mais lindas do mundo são. Na rua em frente estão as putas usando drogas e mostrando o saco em posições exóticas, as sirenes da polícia, ou das ambulâncias, o som dos bailes onde o amor deu vez à transação financeira terrena, quando a necessidade de sobrevivência impede a dignidade humana de fluir e se estabelecer. Tenho vontade de abraçá-las e dizer que as amo, sem mentira, sem dolo, sem manha. A tecnologia humana é de longe a engenhoca mais bonita de se ver. Quando todo o resto se foi e só permaneceu o piscar de olhos, o sorriso acanhado e atraente dos desdentados, eu sonho com as mãos mais lindas que já me tocaram nessa vida, com a voz mais doce e carinhosa que já me falou ao pé do ouvido, com os tapas mais cheios de tesão que me lavraram a carne branca. Eu sonho com o que é simples, eu sonho porque o sonho nenhum sistema de software ou hardware conseguirá jamais reproduzir, eu sonho porque amo e porque o amor não é simples, não. Não é explicável, não. Não é descartável, não. Quando aparece a gente só experimenta, e vive, e tece, e alimenta, e cresce. Eu amo o sonho que sonho e a moleza que você me dá nas pernas, eu sou pequena num mundo cheio de coisas grandes e indecifráveis, como o meu corpo, o último grito da tecnologia wireless que você tem o poder de ligar apenas com o seu sorriso fino e tímido de canto de boca.
Esboço de análise semiótica de "Sem Anestesia", de Rogério Skylab
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“Ai!”, grita o sujeito, que cumpre também a função de interlocutor no
impasse entre estesia e anestesia que o texto “Sem anestesia” empreende. Um
int...
4 years ago
1 comment:
O software e o hardware podem unir o que era algures inatingível! E não importa de onde vem o amor desde que seja impenetravelmente e inexpugnavelmente verdadeiro!
Bjs
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