Admiro sobremaneira os períodos de plena lucidez que habitam em mim.
Quando sou impelida a amar a pura face que se esconde em meus populosos labirintos internos, sou a fugitiva encontrada, mesclada com a figura permanente e meramente ilustrativa de mim, ilusória a ponto de ser verdadeira.
Não gosto do meu sangue. Luto para esconder minha verdadeira identidade de assassina.
Eu tive uma família pouco proibitiva. Meu primeiro cãozinho, Adam, costumava lamber-me entre as pernas quando todos haviam saído. Se intimidava de fazer isso em frente de outros, embora isso me trouxesse enorme prazer.
Sua língua, grande, ágil e áspera, me sugava de entre as pernas todo o líquido que eu ia derramando. Gosto da testosterona canina desde então.
Eu sofria debaixo de sua língua animal. Sofria de desejo. De comoção carnal.
Queria a todo custo casar-me com aquele bicho malandro que me apresentou definitivamente à feminilidade dissoluta da qual jamais consegui sair.
Já fiz tentativas frustradas com quinas, pés de mesa, agulhas, facões, controles remotos, espigas de milho, trincos, pás de batedeira, sapatos femininos, jarras e sifões de pia mas sem qualquer êxito proeminente.
Falta-me aquele pêlo grosso que envolve a cara terna, o gesto instintivo, a pata sábia.
O corpinho íngreme, a retidão de caráter e a imaginação sadia, os cãezinhos têm agora para mim um valor hierático aumentado.
Quando, por motivos de plena secura íntima, não me umedeço naturalmente o suficiente, dou-lhe de beber a água fria da geladeira na vagina.
Abandono-me à sua sede de cachorro, prévia e propositalmente cansado de vários passeios diurnos. Alimento-me a alma de transformar o corpo em ponte para a conexão verdadeira. Alimento-me da sede de meu cão e de sua língua esperta. Cão que mato logo após o oitavo orgasmo, o sagrado momento de mudar de raça.
Altero o pedigree pelo prazer.
Enterro no quintal corpo e fezes do animal, que me bebeu em doses únicas.