No espelho do banheiro me olhei e não me vi. Me questionei, me tomei de assalto, me pus a tentar. Unhei sua superfície, trinquei sua borda, parafraseei suas conexões. Abri a torneira e vi a água jorrar, para fora da pia, para fora da idéia, simples e indomável elemento. Enquanto tentava utilmente inserir minha insaturável língua no pequeno e tortuoso orifício da torneira, água saindo, eu pensava em como é comezinha a natureza. Que precisa ser presa para se fazer entender.
Sim, eu estava chupando o metal da torneira, a boca cheia de misturas, a cabeça – que eu não voltaria a adornar jamais – pensava em fugir. Eu sentia o borbotão, eu negava a possibilidade de calçar os pés, eu dominava o meu fraco poder de sedução interior. Sentei, no chão frio e respingado. Tirei a blusa e acariciei os seios mínimos, pendurados. De bruços já, me deixei invadir solenemente pela inércia cataclísmica dos seres. A torneira ainda aberta: a água, voluntariosa e acomodada, pingava por não lhe haverem dito para não pingar. Encharcava por baixo minha barriga nua, minha consciência nua e despudorada.
Experiência dos cometas esporádicos, eu me deixava judiar pela tangibilidade das coisas, pela confluência de todos os meus pontos suscetíveis. A água cremosa que me escorria era marrom, de sujeira, de cisternas não lavadas, de conjunção extremamente humana. Meu maior erro (o que me levará à tumba final) é ser demasiadamente humana.
É pena, mas sou demasiado humana para viver.
Não posso me sentir parte desse sistema terroso e baço, não devo pertencer a esse mundo de esquivos.
Subintrante, a água excrementosa me perpassa, me sabatina, me começa e me termina. E eu permito, passivamente, subjacentemente, com a prudência ética dos descarados. Me permito imundiciar pois é somente assim que minha pureza poderá surgir, somente assim me sentirei limpa novamente, coordenável novamente.
E foi ao dar descarga que vi uma de minhas vidas indo embora pela primeira vez.
Nessa hora não me interessa pai nem mãe, sempre irracionais, filho nem sal da terra. Distribuo, sem pejo, impaciência aos azulejos, que me compreendem e me comovem. Tento inverídica me transmutar no sabonete rosa, no estuque sulcado (pela indomável água de cima: infelizmente percebe-se o padrão), no chuveiro pouco funcional e utilitário. Não é um simples banho o que me limpa. Não é um simples beijo o que me determina feliz.
É um desejo de matar a água o que me desce pela garganta, o que lava minha louça, o que leva minhas fezes, o que dá brilho à minha pele. A pobre água, em si, é gradual urgência dos sentidos, maleável, flexível e extinguível.
Tão menor que o fogo, coitada.
No chão do banheiro, irrecorrivelmente pelada, me enfeito das porcarias que o planeta joga fora. Me enfeito de mim mesma no espelho quebrado, me enfeito do piso gelado que me acalma os nervos e o coração agitado. Gostaria, aqui, de engolir a luz. Bocal e fiação, fuselagem inerente, comandos facilmente obedecíveis. Gostaria de ser as minhas próprias necessidades, de poder cair solta e leve no lago negro das impudicícias, de manter meu rabo aberto para qualquer eventualidade de defesa.
Gostaria de ser negra como parede suja de carvão, de odiar o limpo e o belo unicamente por ser a errada, a que não se encaixa, a que carrega o desprezo. Gostaria que minha hidráulica fosse combatível, contornável e pouco certeira, que os meus membros não soubessem o que fazem.
Tenho sempre (e tive sempre) comigo algo que me enganar, ludibriar, engodar e distorcer todo e qualquer lapso meu de generosidade natural.
Mas o que é natural em mim? Possivelmente até o Deus em mim (se há) é artifício solitário de quem almeja a bênção da felicidade passageira. Sou ingênua, sim, ao somente tolerar frações de equívoca felicidade.
Mas é do que sou capaz, por hora.
Gosto de chorar no banheiro, que é o que faço sempre quando acordo, se acordo; de confundir nossas incontroláveis águas, nossas ruínas prestes a desabar, nossas vocações santificáveis de melhorar o ambiente, nosso anseio pelo reconhecimento da Terra.
Eterna água caída, derramada, injuriada e lesiva: é assim que sou, aquela que vaza, inunda e então evapora, seca. E carboniza as adjacências. Mas que fatalmente satisfaz às leis e regras de um tempo arquitetado para abrigar nossos sonhos desfeitos, mero asilo das efervescências decadentes em que nossa mente passeia sem cautela.
Se essa vida não me acompanha, deixo o bolo de carne para trás, se a alma egoísta não me acompanha, deixo-a para trás e sigo, matéria perdida no mundo. É que não admito tropeços no meio do percurso.
É que gostaria de poder jazer ao lado dos que morrem e não saem da nossa cabeça.
Sim, eu estava chupando o metal da torneira, a boca cheia de misturas, a cabeça – que eu não voltaria a adornar jamais – pensava em fugir. Eu sentia o borbotão, eu negava a possibilidade de calçar os pés, eu dominava o meu fraco poder de sedução interior. Sentei, no chão frio e respingado. Tirei a blusa e acariciei os seios mínimos, pendurados. De bruços já, me deixei invadir solenemente pela inércia cataclísmica dos seres. A torneira ainda aberta: a água, voluntariosa e acomodada, pingava por não lhe haverem dito para não pingar. Encharcava por baixo minha barriga nua, minha consciência nua e despudorada.
Experiência dos cometas esporádicos, eu me deixava judiar pela tangibilidade das coisas, pela confluência de todos os meus pontos suscetíveis. A água cremosa que me escorria era marrom, de sujeira, de cisternas não lavadas, de conjunção extremamente humana. Meu maior erro (o que me levará à tumba final) é ser demasiadamente humana.
É pena, mas sou demasiado humana para viver.
Não posso me sentir parte desse sistema terroso e baço, não devo pertencer a esse mundo de esquivos.
Subintrante, a água excrementosa me perpassa, me sabatina, me começa e me termina. E eu permito, passivamente, subjacentemente, com a prudência ética dos descarados. Me permito imundiciar pois é somente assim que minha pureza poderá surgir, somente assim me sentirei limpa novamente, coordenável novamente.
E foi ao dar descarga que vi uma de minhas vidas indo embora pela primeira vez.
Nessa hora não me interessa pai nem mãe, sempre irracionais, filho nem sal da terra. Distribuo, sem pejo, impaciência aos azulejos, que me compreendem e me comovem. Tento inverídica me transmutar no sabonete rosa, no estuque sulcado (pela indomável água de cima: infelizmente percebe-se o padrão), no chuveiro pouco funcional e utilitário. Não é um simples banho o que me limpa. Não é um simples beijo o que me determina feliz.
É um desejo de matar a água o que me desce pela garganta, o que lava minha louça, o que leva minhas fezes, o que dá brilho à minha pele. A pobre água, em si, é gradual urgência dos sentidos, maleável, flexível e extinguível.
Tão menor que o fogo, coitada.
No chão do banheiro, irrecorrivelmente pelada, me enfeito das porcarias que o planeta joga fora. Me enfeito de mim mesma no espelho quebrado, me enfeito do piso gelado que me acalma os nervos e o coração agitado. Gostaria, aqui, de engolir a luz. Bocal e fiação, fuselagem inerente, comandos facilmente obedecíveis. Gostaria de ser as minhas próprias necessidades, de poder cair solta e leve no lago negro das impudicícias, de manter meu rabo aberto para qualquer eventualidade de defesa.
Gostaria de ser negra como parede suja de carvão, de odiar o limpo e o belo unicamente por ser a errada, a que não se encaixa, a que carrega o desprezo. Gostaria que minha hidráulica fosse combatível, contornável e pouco certeira, que os meus membros não soubessem o que fazem.
Tenho sempre (e tive sempre) comigo algo que me enganar, ludibriar, engodar e distorcer todo e qualquer lapso meu de generosidade natural.
Mas o que é natural em mim? Possivelmente até o Deus em mim (se há) é artifício solitário de quem almeja a bênção da felicidade passageira. Sou ingênua, sim, ao somente tolerar frações de equívoca felicidade.
Mas é do que sou capaz, por hora.
Gosto de chorar no banheiro, que é o que faço sempre quando acordo, se acordo; de confundir nossas incontroláveis águas, nossas ruínas prestes a desabar, nossas vocações santificáveis de melhorar o ambiente, nosso anseio pelo reconhecimento da Terra.
Eterna água caída, derramada, injuriada e lesiva: é assim que sou, aquela que vaza, inunda e então evapora, seca. E carboniza as adjacências. Mas que fatalmente satisfaz às leis e regras de um tempo arquitetado para abrigar nossos sonhos desfeitos, mero asilo das efervescências decadentes em que nossa mente passeia sem cautela.
Se essa vida não me acompanha, deixo o bolo de carne para trás, se a alma egoísta não me acompanha, deixo-a para trás e sigo, matéria perdida no mundo. É que não admito tropeços no meio do percurso.
É que gostaria de poder jazer ao lado dos que morrem e não saem da nossa cabeça.
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